quarta-feira, 14 de julho de 2010

literatura, chuva e sossego

a chuva riscava a janela do quarto. pintava de cinza as vidraças da casa. o frio entrava pelas narinas, fazendo-as gélidas e úmidas. o pé, gelado, tentava sobreviver embrulhado por meias não muito quentes. a cidade, mais nublada que o próprio céu, parecia murcha, quase morta. As pessoas, agasalhadas, passavam pela calçada, andando despreocupadas, meio apressadas, como quem diz: "assim que chegar em casa, um copo fervente de café".

e eis que no meio dessa gelidão brutal, há uma menina, envolta por seu cobertor cor-de-rosa. Estampado em flor, forrado por dentro e por fora, essa cobertor não tem apenas o poder de isolar a menina do frio . O cobertor isola não só o frio, mas também a menina do mundo noticiado nos jornais, televisionado pela caixa preta da sala e gélido, que entra pelas frestas da porta. Ele a isola ali, no seu quarto, no seu mundo. O mundo dela, de seus livros, do tempo que passa ali, sozinha com eles, porém tão bem acompanhada. "Eu tinha tanta coisa pora fazer, tanta gente pra ver mas, definitivamente, não desejaria estar em qualquer outro lugar que não esse, fazendo qualquer outra coisa que não isso".

esse sentimento, perseguidopor tanto tempo, ameniza as possíveis angústias da menina. com seus livros, ela conhece pessoas (um tal de Manuca, relembra Quintana e recontacta Drummond). os livros falam por si e pelos autores, mas o engraçado é notar que eles podem ter o significado que quisermos. tudo depende do leitor - não apenas do leitor em si, mas de seu estado de espírito, sua vontade, sua capacidade de abrir-se aos retalhos rabiscados no papel. Abrir-se às idéias ali contidas, às palavras carregadas de sentimentos, convicções, como pequenos recortes de mundo.

ali ela permanece. quente, cálida, calma. a chuva arranha os vidros. mas que importa? o vento sopra nos seus ouvidos, agita as folhas amareladas que caem, agitadas pela brisa outonil. mas ela está ali, rosada, ora pelo calor, ora pela sua concha cor de rosa. ali ela descobre o Recife de Bandeira, nao a Veneza brasileira, mas sim  recife antigo da casa de seu avô, recortadas pelas memórias infanto-juvenis do pernambucano. O que falar da saudade itabirana de Drummond, oitenta por cento ferro, porém, tão leve quanto pluma ao escrever versos como "teus ombros suportam o mundo / e ele  não pesa mais que a mão de uma criança". Quintana, vindo de Alegrete, descreve tão bem aquele ambiente vivido pela menina, que, amando os poemas em silêncio, revela-se uma amante e tanto. Ali, onde a alegria cabe apenas num sorriso.

passadas algumas horas, a menina levanta. renovada, sente como se tivesse sido ela lida pelas letras acompanhadas por seus olhos. moça, pronta a suportar algumas de suas dores e a encarar o mundo que, mesmo depois de tantas cores contidas naqueles retalhos bracos e pretos, continuava cinza.



a Poesia faz uma coisa que parece que nada tem a ver com os ingredientes mas que tem por isso mesmo um sabor total: eternamente ese gosto de nunca e de sempre.

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