domingo, 15 de fevereiro de 2009

Hamlet - Parte I


Demorei o dia todo para conseguir transcrever o que sobrou, o que senti antes, durante e após Hamlet.

Era como se estivesse ainda digerindo essa fusão de pensamentos e palavras, atos e ações a que eu, em meio à grande platéia de dezenas de pessoas, fui submetida ontem.

Vamos lá, começar do começo, tentando por tudo isso no papel, para o mundo do real, do transcritível.

Me aprontei toda pra ir ao teatro. Não que eu vá exibir certos modelitos no teatro, mas sou daquelas que gostam de ir mais arrumada, afinal, peça é sempre um espetáculo – é pior que pizza: mesmo quando é ruim é bom. Teatro resume a arte do improviso, a arte de uma nova cena a cada ato, por maais que a trama seja a mesma. Cheguei no Teatro – lindo, como sempre, e eu olhei os vitrais, como sempre. O saguão lotadoo. E eu mais extasiada do que NUNCA.

A peça atrasou alguns minutos. Sem tietagem, mas confesso que, bem nos primeiros cinco minutos de peça, fiquei absorta do ver Wagner no palco. Aquilo de “Nossa, olha ele ali, a alguns metros, encenando a peça que eu esperei tanto tempo para conseguir assistir”. Mas depois de certo tempo, esse estado de transe foi passando.

Essa transe de admiração foi sendo substituída por uma surpresa tão boa – o elenco TODO era sensacional. Claro, é muita justiça ir ver uma peça dessas apenas pela atuação do Moura (e, por mais absurdo e obvio que isso seja para alguns, senti algumas permanecendo nesse frenesi durante as três horas e meia de peça.). Wagner está sim DIVINO na peça – o que eu percebi após meia hora de espetáculo, confesso – mas o elenco,de forma geral é DO ALEM. Tonico Pereira estava invejável no papel do tio de Hamlet, mais do que vilão:um grandessíssimo canalha. Mais do que gritar, dar vida a falas que eu, leitora tão precoce e mal treinada, pouco teria notado, Tonico transpareceu a falta de caráter do personagem – que, além de assassinar o próprio irmão, finge redenção para morrer em momento de glória e salvação. Já Georgiana Góes, a intérprete de Ofélia, além de linda, destaca-se de maneira brilhante ao encenar a loucura e a morte de sua personagem – o lençol branco marcando as expressões de dor no rosto de Ofélia, congeladas por longos instantes na câmera logo a frente. Já Mateus Solano, cuja articulação e o tom de voz, firme porém amigável, fizeram de Horácio, o melhor amigo de Hamlet, mais que uma mera sombra do príncipe dinamarquês. Gertrudes (Carla Ribas), viúva rainha da Dinamarca, é a causadora de uma das maiores perturbações que afligem o protagonista: o amor incestuoso vivido entre ela e o tio de Hamlet, logo após a morte de seu pai, assassinado. Gertrudes muda de comportamento e postura ao longo da trama: de esposa submissa ao atual marido passa a encarnar a mulher de valores falidos, casando-se com o cunhado, que assumiu o trono no lugar de seu filho. Peculiar perceber como o cabelo de Carla Ribas marca essa mudança da personagem. No início da peça, os fios negros encaracolados encontravam-se alinhadamente presos, enquanto que, no diálogo travado com Hamlet em seu quarto, o cabelo solto e as roupas íntimas de dormir revelam a rainha dinamarquesa uma mulher que seria comum não fosse a situação dramaticamente trágica em que se encontra. Nesse diálogo, Gertrudes ouve do filho as terríveis verdades das quais ela tenta esconder-se através do cabelo alinhado, da roupa luxuosa, da ambição ao trono, da tradição real.


Obviamente que os outros atores deram o toque final à peça. Polônio, pai de Ofélia, proporciona muitos dos momentos mais inesperadamente engraçados do espetáculo.

Esta aí um dos motivos pelos quais a adaptação de Aderbal Freire Filho a adaptação merece destaque. Mesmo sendo um dos clássicos monstruosos da literatura universal, o Hamlet brasileiro (ou devo dizer baiano?) não transparece toda a complexidade e formalidade por trás de Hamlet, reflexo da magnitude Shakesperiana. Sem roupas extravagantes de reis da época, sem qualquer cenário que fizesse alusão a castelos ou cortes. Sem músicas instrumentais clássicas que reavivassem o século XVI vivido por Shakespeare. Pelo contrário: calças, all star e casacos pretos, escadas cuja estrutura interna está à mostra, trilha sonora (muito boa) nada clássica e muito da contemporânea representada pelos acordes de Rodrigo Amarante, que mescla a doçura do violão e a agressividade da guitarra, ou vice-versa, dependendo do momento da peça e do ponto de vista. E o melhor: uma câmera na mão flagrando rostos, olhares, costas, braços, mãos, bocas, toques, gritos. Tudo ali, ao alcance da platéia, projetado num telão ao fundo.

Pelas impressões que tive, posso dizer que a maior (e melhor) surpresa foi a palavra que, para mim, é capaz de resumir a peça. Simplicidade. Apesar dos pesares, de tratar-se de Shakespeare, de uma peça escrita originalmente em inglês arcaico, de abordar temas complexos e humanamente universais como a morte, a traição, a paixão, a loucura, a vingança. A alma humana em toda a sua profunda obscuridade e complexidade absoluta. O homem que, mesmo em seu estado mais irracional, faz-se propositadamente de louco para satisfazer seus planos previamente arquitetados. A declamação do “Ser ou Não Ser” ali: explicado, como num diálogo entre o elenco e a platéia que, espantada, se indaga: “Será que eu entendi?. “Será isso mesmo o que esses aclamados versos querem dizer?”. Segundo o diretor, sim, o é.

Acostume-se. No Hamlet brasileiro é ‘simples’ assim.

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